Por Fábio Lessa
Nos meandros da história do Brasil, emerge a figura complexa e fascinante de Dom João VI, um monarca que desafia rótulos e caricaturas. Há dois séculos, ele atravessou o oceano, trocando Portugal pelo Rio de Janeiro, acompanhado por uma corte repleta de expectativas e sabores. Essa jornada não foi apenas uma fuga das investidas de Napoleão, mas uma coreografia intricada de política, paixões e, sobretudo, gastronomia. A imagem de Dom João VI como um rei grotesco e indeciso desmorona quando exploramos os matizes de sua personalidade. Por trás de sua timidez, residiam a sensibilidade, a preocupação pela justiça e uma bondade incomum. Ele não era apenas um monarca, mas também um político atento e uma alma compassiva, deixando marcas inesquecíveis em sua passagem.
A gastronomia, cenário dessa narrativa, se transforma em um portal para entender o rei para além das aparências. Os apetites vorazes de Dom João VI, seu gosto por nove frangos diários e laranjas baía, iniciam a exploração de suas particularidades culinárias. Esses hábitos não apenas saciavam sua fome, mas também o conectavam com a essência da comida e a cultura do Brasil colonial. No epicentro da corte, os cozinheiros da época – artistas em sua própria esfera – desempenhavam um papel crucial. Vicente Paulino, o chef português que desembarcou com a corte real, infundiu o paladar real com as tradições lusitanas. Suas criações, entrelaçando peixe seco, carne-de-sol, temperos como alho, cebola, alecrim e outros, encantavam os sentidos e fortaleciam os laços da realeza.
Após Vicente Paulino, José da Cruz Alvarenga emergiu como o maestro das panelas. Sua maestria na preparação de frangos, uma predileção real, o catapultou para a vanguarda da corte. O elogio de Dom João VI por suas habilidades culinárias não apenas reflete a paixão do rei por pratos bem-preparados, mas também a importância da cozinha real como um portal para o coração do Brasil. Entretanto, as cozinhas reais não eram apenas palcos de habilidades culinárias, mas também de rivalidades fervorosas. O duelo entre José da Cruz Alvarenga e Torres, relatado por Luiz Joaquim dos Santos Marrocos, Bibliotecário Real, em sua correspondência, revela as disputas de posições na corte. A habilidade culinária era mais do que um talento, era uma moeda de influência e status.
Além dos bastidores da cozinha, Alvarenga, o cozinheiro habilidoso, escolheu permanecer no Rio de Janeiro e viver uma vida aposentada, ganhando o apreço do povo pelo carinho que demonstrava. D. João VI elogiava sempre as aves que ele preparava e, por isso, afeiçoou-se ao cozinheiro. “Só o Alvarenga sabe fazer os frangos como eu gosto”, afirmava o patrão comilão. O príncipe regente, e depois rei saboreava, as aves com as mãos e deitava os ossos ao chão. A seguir, lavava as mãos na água de uma bacia de prata ou limpava-as diretamente num guardanapo ou toalha. Os galináceos sempre lhe deram água na boca. Era predileção familiar, que vinha de D. João IV (1608-1656), primeiro soberano da dinastia, portanto estava no seu DNA. Alcançaria o neto D. Pedro II (1825-1891), segundo imperador do Brasil, fanático por canja de galinha e, particularmente, de macuco (ave selvagem brasileira de grande porte, da família dos tinamídeos).
Enquanto Dom João VI desfrutava de suas refeições com as mãos e demonstrava um apreço indelével pelos galináceos, os Bragança, sua dinastia, compartilhavam a predileção familiar por aves em diversos preparos. Grelhados, assados, ensopados e desfiados, os Bragança exploravam as variações, resgatando receitas lusitanas antigas, como a galinha albardada e a galinha mourisca, que remontam a séculos de tradição culinária. No Rio de Janeiro, a paixão gastronômica pela carne de galinha causou até transtornos mercadológicos, com a casa real adquirindo galináceos em abundância para abastecer desde a mesa real até hospitais e asilos. A carne da galinha se tornou um elemento essencial na dieta da época, desde o combate a gripes e resfriados até o suporte nutricional a parturientes e convalescentes.